Dança, James Bond e espionagem dissimulada

Alexandre Molina

 

O Ciclo 4 do Trepadeira já começa com o anúncio de continuidade. Sobrou dinheiro! Disseram Nirvana e Peti. Por incrível que pareça, essa milagrosa estratégia de gestão que vem sendo uma prática necessária na produção em dança, especialmente na dança que intenta questionar os formatos convencionais de proposição cênica, tornará possível, quem sabe, um quinto ciclo. Portanto, o Ciclo 4 teve um tom de também se repensar, ou melhor, de iniciar uma formulação sobre um próximo ciclo que pudesse favorecer pensamentos colaborativos sobre o projeto, junto com as pessoas que dele participaram.

Tal investida já prevê desdobramentos: que as estruturas componentes do projeto não sejam rígidas; o desafio de reunir os trepadores dos ciclos anteriores; e colocar a curadoria em risco, provocando o artista curador. É o projeto criando modos de repensar o seu próprio formato. Um jeito coletivo de dar continuidade à ação; repensando a ideia de residência e buscando se distanciar do endurecimento dos lugares.

E o que pensa o Espião sobre tudo isso? Este foi o desafio que recebi da equipe do projeto Trepadeira, um encontro organizado em quatro ciclos para compartilhamento de modos de criação em dança.

Ocupei-me, durante alguns dias, em pensar sobre a finalidade desse sujeito que espia. Pensando na configuração do projeto, as pistas apontavam para um possível jeito de criar reflexões, a partir da conexão entre os pontos disparados por cada participante do ciclo.

Fuçando um pouco mais, observei que a figura do espião é associada à tarefa da espionagem. O cinema, por exemplo, consagrou tal tarefa em filmes como os da série 007, inspirados na obra de Ian Fleming, escritor inglês em meados de 1950. Nesta obra, a personagem James Bond – homem alto, moreno, de olhar penetrante, viril, porte atlético e sedutor, exímio atirador e perito em artes marciais (ufa!) – configurou-se como a imagem do competente espião. O Espião que Sabia Demais, uma produção de 2011 dirigida por Tomas Alfredson e a série Bourne (conjunto de três filmes dos diretores Doug Liman e Paul Greengrass, produzidos entre 2002 e 2007), são outros dois modelos da eminência do espião nas telas do cinema.

 

Remontando ao universo cinematográfico é interessante perceber que a espionagem figura, em geral, ligada à ações militares, governamentais ou de organizações, com o objetivo de conseguir informações secretas ou confidenciais do inimigo ou oponente. Em muitos países, a espionagem é um tipo de crime punível com prisão perpétua ou pena de morte. Nos Estados Unidos, por exemplo, a espionagem é um crime capital, embora a pena de morte seja raramente aplicada, pois o governo costuma oferecer ao acusado um abrandamento da pena, em troca de informações. Contudo, quando a espionagem é praticada por um cidadão do próprio estado-alvo, é geralmente considerada como uma forma de traição.

 

Depois disso tudo, a dúvida se tornou mais severa: de que forma eu, na condição de espião, poderia trazer alguma colaboração para um projeto de dança? E tem mais, esta figura, recorrentemente de identidade secreta, neste caso do Trepadeira, estava propositalmente às vistas de qualquer um e cumprindo essa tarefa de espionar. Não me sentia, portanto, nem infiltrado e muito menos possuidor de tantos atributos como um James Bond. Por outro lado, o Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo (Lexikon, 2010), caracteriza a espionagem como algo diretamente ligado à curiosidade, ao interesse, à ânsia; uma sede inexaurível de saber. Portanto, o espião se configura, nesta interpretação, como um sujeito curioso, perguntão, abelhudo, fuçador, o que me estimulou a investir, então, da tarefa de buscar conexão entre as proposições e os discursos ali apresentados.

No Ciclo 4, a Key Sawao performou com Mudas (2004-2012). A Zélia Monteiro aqueceu a estufa com nossos desejos. O Marcos Maraes nos brindou com um banquete lindo de ideias instigantes no piquenique e a Josefa Pereira colaborou coreograficamente com seus pensamentos em forma de caneca, água e papel. E no meio desses paulistanos todos, estava eu lá, dando uma pitada mineiro-baiana em forma de espionagem.

Então, farei o seguinte acordo com vocês: a partir da noção de espião como sujeito insaciável, me proponho a pensar aqui sobre o Ciclo 4 de maneira não linear. Para mim isto ficou claro desde o início. Optei por não investigar a trajetória dos meus colegas de ciclo – sorry, James Bond! Já conhecia o Marcos Moraes, mas fazia algum tempo que não nos falávamos e não tinha muita ideia do que ele estava fazendo recentemente. A Key e a Zélia eu só conhecia via YouTube, pelos trabalhos do Núcleo de Improvisação e da Key Zetta e cia. A Josefa foi um feliz primeiro encontro. Partindo do sim, eu quero estar aberto ao encontro e ao diálogo, me permiti acessar as pessoas no tempo dos acontecimentos. Uma espécie de conversa de um texto com vários outros textos que foram generosamente expostos ali.

O Trepadeira surge do desejo de pensar sobre a partilha de modos de criação em dança. Neste sentido, o quanto é possível construir conceitos, debater ideias, despertar curiosidades sobre os percursos criativos e as escolhas estéticas e políticas na criação em dança? Estas questões estão aquecidas em muitos lugares atualmente. Aqui em Salvador estamos pensando sobre isto. Em Fortaleza, Recife, Teresina e São Luis é possível acompanhar inquietações semelhantes, por meio do compartilhamento de trabalhos dos colegas do nordeste. De Uberlândia, Goiânia, Florianópolis, Curitiba e Pelotas tenho recebido notícias ou participado de encontros com desejos similares. Formas de abrir caminhos para outras possíveis produções de conhecimentos. Conhecimentos que se dão ali, no momento da experiência.

Durante a Estufa, a Zélia começa partindo de uma proposição de movimentação que tem as estruturas orgânicas do corpo e suas  relações com a gravidade. Impulso criativo para a improvisação. A relação com o trabalho da Key, na leitura de Zélia, surge na indicação para escrevermos um ou dois desejos num pedaço de papel e dobrar como faz a Key no elemento cênico que a acompanha em Mudas. Improvisação motivada pelos desejos de cada um e exploradas com o material de movimento trabalhado no primeiro momento. Como cada corpo se relaciona com o espaço, com a ignição e com o desejo? Essa foi uma das questões norteadoras proposta por Zélia. Uma espécie de afinação entre o dispositivo cognitivo e o motor. A Zélia declara que tem o hábito de trabalhar pelo corpo e que a imagem seria conseqüência. No trabalho da Key essa relação parece se dar de forma diferente: a imagem é muito forte, apesar da autora afirmar que seu trabalho nada tem a ver com desejos especificamente.

Este ambiente da Estufa provocou Zélia a pensar sobre como produzir uma situação de conversa com o trabalho da Key, num formato de convivência, tendo (a Zélia) o seu próprio trabalho como dispositivo para o diálogo. Foi interessante perceber como uma criadora se propôs a entrar no trabalho de uma outra criadora, nesta relação discursiva de ensino-aprendizagem. Um desdobramento possível, talvez, seria a Key poder revisitar o seu trabalho a partir das experiências emergidas no encontro com a Zélia e os demais participantes da Estufa. Possibilidade já desejada pelo projeto e que poderá ser experimentada no possível Ciclo 5.

No Piquenique, o Marcos destacou a relação que, pelo menos três dos participantes deste Ciclo, tem com a figura do mestre. Zélia e Klauss Vianna, Key e Takao Kusuno e Marcos e Graciela Figueroa. Apesar de reconhecermos os vestígios destes mestres no trabalho de cada um, é perceptível o caminho particular que estes sujeitos constroem na sua trajetória no mundo. Jaqueline Vasconcellos, uma das participantes e produtora do projeto, faz uma ponte interessante aqui: pensar a obra de alguém como estados de uma vida inteira. As questões propostas nos trabalhos da Zélia e da Key, estão visivelmente contaminadas por suas convivências com Klauss e Takao. No entanto, as possibilidades de outros encontros favoreceram escolhas que se apresentam numa espécie de arranjo particular; um modo próprio de apresentar suas ideias para o mundo.

Essa relação de interferência, de formas de contaminação pelo trabalho do outro, motivou também a proposição da Josefa. Caneca, papel, água. Relações de transferência construídas sobre diversas formas de penetrar ou romper uma superfície ou situaçnão. Imagens vindas de um trabalho seu anterior, o vídeo O Gole que, segundo ela, faz contato com a imagem que ela teve do primeiro trabalho em que viu a Key dançando.

Apropriar de algo nos aproxima daquilo, segundo o pesquisador e professor espanhol Jorge Larrosa. No sentido proposto por ele, é possível compreender a experiência a partir de três dimensões: da exposição – colocar-se a ver; da paixão – por identificação ou semelhança; e da singularidade – por ser sempre de alguém. Assim, os encontros possibilitados neste Ciclo 4 do Trepadeira, puderam adensar mais questões: há transferência sem mediação? Como nos encontramos com a obra de arte? O que cada situação permite de acesso? Quais as entradas possíveis? Em que medida essa senha se configura na relação de um momento com o outro? É a experiência do encontro como potente espaço de (trans)formação.

Mais perguntas e o desejo de continuar pensando junto. Assim foi terminando nosso encontro, num delicioso fim de tarde de domingo em São Paulo. A luz começava a deixar o ambiente. Uma boa deixa para a continuidade das reflexões apontadas neste texto: deixar que cada um agora vá ascendendo suas lâmpadas, lanternas, faroletes, fósforos, luminárias, fogueiras, displays de celular ou que apareçam os vaga-lumes. E que venha o quinto ciclo!